

Ele morreu em 1989, no hospital psiquiátrico Juliano Moreira, no Rio, onde entrou pela primeira vez, em 1939, como indigente. Era assim que a ficha médica resumia sua vida: “idade: 27 anos; cor: negra; classe: indigente”. Quatorze anos depois de sua morte, a herança de Arthur Bispo do Rosário — que em 50 anos de isolamento no hospital psiquiátrico produziu uma obra considerada sem paralelo na arte brasileira — chega a um dos mais importantes museus da França e do mundo, a Galerie Nacional do Jeu de Paume, em Paris, numa parceria da Prefeitura do Rio com o Ministério da Cultura da França. É a primeira vez que um museu francês abre espaço para uma exposição individual das obras de Bispo. De amanhã ao dia 28 de setembro, 79 peças, todas do Museu Bispo do Rosário, no Rio, vão ocupar metade do Jeu de Paume. Para organizar a exposição, o diretor do museu, Daniel Abadie, trouxe de Miami o curador mexicano Augustin Arteaga, diretor do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) até março do ano passado, quando decidiu deixar o país, vítima da crise econômica argentina. Não é qualquer um que expõe no Jeu de Paume. O museu acaba de encerrar uma de suas exposições de maior sucesso: a das obras do pintor surrealista belga René Magritte, que atraiu mais de 300 mil pessoas em quatro meses. Também não é simples montar uma exposição no Jeu de Paume. As obras de Bispo ficaram três semanas numa sala hermética, sem oxigênio, na periferia de Paris, desinfetando, para melhorar sua preservação — o que exigiu uma técnica especial, pois cada objeto tem uma enorme quantidade de materiais diferentes, de lata a plástico. Curador conheceu obra de Bispo na Bienal de Veneza A idéia da exposição partiu do próprio diretor do Jeu de Paume, Daniel Abadie. Segundo Arteaga, ele tem se interessado por artistas da América Latina e viu pela primeira vez o trabalho do Bispo em 1995, na Bienal de Veneza. Viu ainda seu trabalho no segmento “Imagens do inconsciente” da “Mostra do redescobrimento: Brasil + 500”. O que mais chamou atenção dos dois foi como Bispo do Rosário — sem formação ou nenhum contato com o mundo artístico — conseguiu produzir uma obra tão universal, original e completa, que incorpora várias correntes da arte contemporânea: do realismo mágico e poesia concreta latino-americana às grandes correntes, como ready-mades , novo realismo e arte conceitual. Emoção e linguagens da arte contemporânea — É um artista que tem uma alta força, uma tal emoção. Ao mesmo tempo, tem todas as linguagens da arte contemporânea. É muito interessante ver como alguém que ficou internado por tantos anos numa instituição psiquiátrica conseguiu ter uma obra criativa tão particular, tão forte. Ele conseguiu ultrapassar os limites da técnica. Vai de um tipo de trabalho delicado, o bordado, a outro — explica Arteaga. Arteaga conhece bem a obra de Bispo. Ele fez todo um estudo só sobre os bordados do artista. Artur Bispo do Rosário era sergipano. Foi para o Rio em 1925, alistou-se na Marinha, trabalhou na Light, foi lutador de boxe, borracheiro e lavador de bondes. Em 1939, teve um surto e, depois de perambular dois dias pelas ruas do Rio, foi internado com o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Com o fio azul arrancado do uniforme de paciente e lençóis encardidos, bordou, com palavras e imagens, fatos de sua vida. Ele reciclou o lixo do hospital na sua obra, aproveitando tudo: papelão, sapatos velhos, canecas, garrafas, embalagens plásticas. A maior expressão de sua obra, que merecerá destaque no Jeu de Paume, é o “Manto da apresentação”, um bordado de um requinte extraordinário que ele pretendia usar em seu encontro com Deus, no dia do Juízo Final. Arteaga não quis que vida do artista ofuscasse a obra — É uma exposição que vai ter uma transcendência muito grande. Todo mundo encontra nele um artista conceituado, de grande porte — diz Arteaga. Arteaga, entretanto, teve uma preocupação, ao montar a exposição: não ressaltar demais a história da vida de Bispo, por mais interessante que seja, para não ofuscar o valor artístico de sua obra, como aconteceu com a pintora mexicana Frida Kahlo. Ela eternizou em suas telas o sofrimento de viver a maior parte de sua vida numa cama, doente. Seu sofrimento, mais do que sua obra, tem sido o foco de atenção e virou tema de filme, recentemente. — A biografia do Bispo é muito interessante. Mas é a obra dele que é mais importante. Sua obra é importante porque é boa, não porque foi feita por um louco — insiste Arteaga. Como observa o curador, a obra do Bispo, em si, já leva ao personagem. Os seus bordados, por exemplo, contam sua vida, e ele dedica vários objetos ao boxe, sua paixão.
(© O Globo On Line)
05-06-2008
Deborah BerlinckCorrespondente PARIS
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05-06-2008
Deborah BerlinckCorrespondente PARIS
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