José Maria Dias da Cruz é Artista plástico, foi professor de Pintura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Publicou: “Cadernos de Aulas - Cor" (MAM-RJ, 1984); "Da Cor na Pintura - o Ponto de Passagem" (Edições do autor,1989 – livro revisto e reeditado pela Editora Taba Cultural, como: “A cor e o cinza – Rompimentos, revelações e passagens”); e “Gonçalo Ivo, O livro das àrvores” – Texto de apresentação(Rio, Editora Sextante, 2000). Considerado, em enquête realizada pelo Jornal do Brasil, no ano de 1996, um dos setenta artista brasileiros mais importantes do século XX
Resumo: O texto é uma indagação sobre possíveis geometrias das cores, a partir de Leonardo da Vinci e principalmente de Cézanne. Este afirmava que há uma cor em toda a natureza , um tom onipresente- o cinza sempiterno- que seria entendido como um ponto, e que como tal, uma fração de um todo inatingível para o ser humano. As cores possuem várias dimensões e se auto-organizam dentro de um colorido, quase ao acaso. A harmonia geral pode se dar por si só, mas uma vez que as cores nunca estão sós, como saber quando elas de fato são o que estamos vendo? Se as realidades alteram as cores, restam as perguntas: será que as cores criam um grande colorido potencialmente ativo e nada mecânico? Os cinza sempiternos estariam sempre em todos os lugares de um espaço plástico assim concebido. Seria este cinza a mônada a qual Cézanne se refere? Palavras-chave: geometrias cromáticas, Cézanne, da Vinci.
Algumas lembranças
Para pensarmos em uma geometria das cores, temos que descartar a teoria cromática que classifica as cores em primárias e secundárias, etc. Neste sentido, partindo de umas ...
observações de Leonardo da Vinci, pensei em vários diagramas considerando os pares amarelados-azulados, avermelhado-esverdeados e os claros e escuros. Redefini, também, os fenômenos dos rompimentos dos tons, e desenvolvi a possibilidade de intuirmos os cinzas sempiternos. Espero que os dois desenhos que ilustram essas anotações sejam suficientes para os leitores se familiarizarem com essas complexas questões cromáticas.
O estudo desses fenômenos me levou a uma compreensão maior da obra do pintor Martinho de Haro, possivelmente o mais cezanneano, como colorista, de nossos artistas modernos. Pode nos levar, também, a outros estudos, como o esforço de artistas como Petorutti e Torrres Garcia, e o escritor Marques Rebelo, no sentido de procurar uma maior integração cultural dos países do cone sul, logo depois do término da Segunda Guerra Mundial, quando se desenhava um outro mapa geopolítico. Esse esforço ensejou a organização da primeira exposição de artistas modernos brasileiros a sair do país, em 1945, dando origem ao primeiro livro escrito por um estrangeiro sobre nossa produção artística. Refiro-me ao livro de José Romero Brest, crítico argentino, Vinte artistas brasileños. Esse movimento permitiu a fundação do primeiro museu de arte moderna de fato no Brasil em 1948, o Museu de Arte Moderna de Santa Catarina.
Não tratarei aqui especificamente dessas questões, mas de meu próprio trabalho, aluno que fui do pintor argentino Emilio Petorutti. Deixo aqui essas anotações registradas com a esperança de que elas possam ser estudadas com a profundidade que merecem.
Cézanne e uma geometria das cores
As cores são enigmáticas. Cézanne fez referência a um cinza que reina em toda a natureza e que pintava, uma secção do espaço. O cinza onipresente, os cinzas sempiternos e sua lógica e os acasos, as várias dimensões das cores, a questão de uma centralidade não absoluta, os rompimentos dos tons, os contrastes considerando-se uma dinâmica cromática, harmonias e desarmonias, o serpenteamento, as cores abstratas substantivas e as concretas ...
... adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir.
Na década de sessenta do século passado, foi dito que uma realidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois, essas idéias se adensaram. Afirmou-se, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos a tal ponto que o acaso seria o limite daqueles. A geometria dos fractais, descoberta na década de sessenta, e a teoria do caos ainda eram desconhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos, em 1980. Pintei naturezas mortas considerando aquelas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas aos quais me referi, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje, penso em uma geometria das cores.
Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos ou um colorido total, cinza esse que nos é interditado. Restam-nos os cinzas sempiternos, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo, pois que, para nós homens, esse todo é inatingível. Como as cores possuem várias dimensões, diremos que elas estão sempre se auto organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam desse processo, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior pela agregação de alguns poucos coloridos. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa auto organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos: digamos, novas cores que participariam do colorido em outro nível de realidade.
Há o fato de que cada cor ao conter sua oposta, formando um par, é afirmar que cada cor contém também um cinza sempiterno. Cada cor poderia ser, neste caso, uma unidade irredutível por trazer em si certa potência? Cézanne afirma que a harmonia geral se dá por si só. Antes de se dar, teríamos uma desarmonia?
Há um limite, entretanto, pois uma auto organização se encaminharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, um colorido se desorganizaria e se auto destruiria, caso se mantivesse dentro de certos limites e níveis de realidades. Somos levados a escolher algumas poucas cores ou acidentes decorrentes do acaso, para mantermos a dinâmica do colorido e não nos perdermos evitando um fim prematuro.
Por isso, falar do acaso da última pincelada em uma pintura, por exemplo, é citar Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Essa seria uma pincelada-limite. Um novo processo semelhante de auto organização se inicia, e assim sucessivamente, até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente, e de seu fim, nossa própria ‘morte’, quando cessam os limites de nossos sentidos. Há, contudo, uma existência que nos foi permitida. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.”
Transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética , mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
Para nós, estes cinzas sempiternos são um princípio e um fim, pois é, um pré ou pós fenômeno. Princípio este, quando intuímos que deles surgem os coloridos. Os pós-fenômenos, os acontecimentos dentro dos coloridos, representam a permanência de uma convivência entre as cores. Um fim, quando se auto desorganizam, quando nossos sentidos não mais nos permitem a percepção da manifestação dos rompimentos dos tons e dos cinzas sempiternos. Reorganizar-se-iam em outro nível de realidade, quando a convivência entre as cores se desse pelos movimentos concêntricos e excêntricos no sentido de um cinza sempiterno. Compreendemos Baudelaire, quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim absoluto dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa própria morte.
Pelas cores, podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entretanto, continua.
... adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir.
Na década de sessenta do século passado, foi dito que uma realidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois, essas idéias se adensaram. Afirmou-se, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos a tal ponto que o acaso seria o limite daqueles. A geometria dos fractais, descoberta na década de sessenta, e a teoria do caos ainda eram desconhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos, em 1980. Pintei naturezas mortas considerando aquelas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas aos quais me referi, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje, penso em uma geometria das cores.
Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos ou um colorido total, cinza esse que nos é interditado. Restam-nos os cinzas sempiternos, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo, pois que, para nós homens, esse todo é inatingível. Como as cores possuem várias dimensões, diremos que elas estão sempre se auto organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam desse processo, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior pela agregação de alguns poucos coloridos. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa auto organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos: digamos, novas cores que participariam do colorido em outro nível de realidade.
Há o fato de que cada cor ao conter sua oposta, formando um par, é afirmar que cada cor contém também um cinza sempiterno. Cada cor poderia ser, neste caso, uma unidade irredutível por trazer em si certa potência? Cézanne afirma que a harmonia geral se dá por si só. Antes de se dar, teríamos uma desarmonia?
Há um limite, entretanto, pois uma auto organização se encaminharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, um colorido se desorganizaria e se auto destruiria, caso se mantivesse dentro de certos limites e níveis de realidades. Somos levados a escolher algumas poucas cores ou acidentes decorrentes do acaso, para mantermos a dinâmica do colorido e não nos perdermos evitando um fim prematuro.
Por isso, falar do acaso da última pincelada em uma pintura, por exemplo, é citar Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Essa seria uma pincelada-limite. Um novo processo semelhante de auto organização se inicia, e assim sucessivamente, até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente, e de seu fim, nossa própria ‘morte’, quando cessam os limites de nossos sentidos. Há, contudo, uma existência que nos foi permitida. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.”
Transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética , mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
Para nós, estes cinzas sempiternos são um princípio e um fim, pois é, um pré ou pós fenômeno. Princípio este, quando intuímos que deles surgem os coloridos. Os pós-fenômenos, os acontecimentos dentro dos coloridos, representam a permanência de uma convivência entre as cores. Um fim, quando se auto desorganizam, quando nossos sentidos não mais nos permitem a percepção da manifestação dos rompimentos dos tons e dos cinzas sempiternos. Reorganizar-se-iam em outro nível de realidade, quando a convivência entre as cores se desse pelos movimentos concêntricos e excêntricos no sentido de um cinza sempiterno. Compreendemos Baudelaire, quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim absoluto dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa própria morte.
Pelas cores, podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entretanto, continua.
Mônadas
E essa frase do Cézanne? “As cores são quase umas mônadas.” Intriga-me a palavra quase. É como se o mestre nos quisesse mostrar toda a fé que tinha pela pintura. E mais, como o pensamento plástico, com sua lógica, pode nos levar a profundas reflexões. Braque certamente muito o compreendeu ao afirmar: “Não busque convencer, contente-se em fazer refletir”.
Nesse sentido só me resta tentar uma aproximação das mônadas com o cinza sempiterno e buscar uma melhor explicação para uma geometria das cores.
Perspectiva das cores
A perspectiva aérea de Leonardo não era somente azular os objetos na medida em que se afastassem do observador. No Tratado da Pintura, está dito que ele considerava outros fenômenos, como a defasagem entre cor e forma, os graus de detalhes, etc. O que dizer de Cézanne que afirmou que queria chegar à perspectiva unicamente pelas cores? Uma geometria cromática aproximaria a idéia das mônadas, de acordo com a lógica do pensamento plástico, do cinzas sempiternos e dos rompimentos dos tons.
Ainda as mônadas
Por que pintar é tão difícil? Sei que é possível se pensar em uma geometria das cores. A unidade mínima (como as mônadas, seria o cinza sempiterno mesmo, um ponto potencialmente ativo). Uma primeira dimensão seria o momento presente de uma cor, quando nunca saberíamos quando ela é ela mesma, assim como os cinzas sempiternos. Outras dimensões, o trajeto desta cor em direção a sua oposta, da intemporalidade do presente à temporalidade do colorido. Em seguida teríamos uma unidade cromática por interferência de uma outra cor que tenha afinidade com aquela primeira cor presente e intemporal, e essa afinidade surgiria de um cinza sempiterno que poderia se apresentar como comum às duas. Mas essa terceira cor se individualizaria por ser esse cinza, comum as duas, também seu próprio cinza sempiterno exclusivo. Esses cinzas exclusivos podem gerar situações diferentes. Várias unidades criariam um grande colorido potencialmente ativo, nada mecânico. Os cinza sempiternos estariam sempre em todos os lugares de um espaço plástico assim concebido.
Será que isso nos faz compreender a frase de Cézanne na qual ele se refere às mônadas?
Ilustrações (clique para ampliar):
Fonte: POLÊM!CA revista eletrônica editada pela UERJ
ISSN 1676-0727 - Volume7 (3) - julho/setembro 2008
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