Blog da turma da sala 3

domingo, 30 de setembro de 2007

PALAVRAS DE ARTISTA

Artista :Lygia Clark
Fonte : Escritos de Artistas Anos 60/70
Glória Ferreira e Cecìlia Cotrim (orgs.)
Jorge Zahar Editor
páginas 46,47,48 e 49

Maio 1959
Carta a Mondrian

Hoje me sinto mais solitária que ontem. Senti uma enorme necessidade de olhar o seu trabalho, velho também solitário. Dei com você numa foto fabulosa e senti como se estivesse comigo e com isto já não me senti tão só. Talvez amanhã possa dar também de meus olhos, de minha solidão e de minha teimosia a alguém que será um artista como eu ou talvez mais ainda, como você. Não sei para que você trabalha. Se eu trabalho, Mondrian é para antes de mais nada me realizar no mais amplo sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra... Se exponho é para transmitir a outra pessoa este *momento* parado na dinâmica cosmológica, que o artista capta. Você que era um místico deve quantas e quantas vezes ter vivido “momentos” como este dentro da vida, ou não?
Dizem que você detestava a natureza – é verdade? Você não acha que a obra de arte é o produto de duas polaridades que é a dinâmica da vida humana? Você estava preso a terra tão profundamente e o vôo da verticalidade era sua medida?
Pois a natureza me alimentou, me equilibrou quase de uma forma panteística. Mas com o tempo,numa outra crise, já isto não adiantou e foi o “vazio pleno” , a noite,o silêncio dela que se tornou a minha moradia.Através desse "vazio-pleno “me veio à consciência da realidade metafísica, o problema existencial, a forma, o conteúdo, (espaço pleno que só tem realidade em função direta da existência desta forma...) .
Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais:num sonho utópico, estupendo, pensou em que eras vindas em que a própria vida " construída" seria uma realidade plástica.
Talvez isto te salvasse da tua própia solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo, mas para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. Se o homem não pode sentir como é importante esse desenvolvimento interior –chamemos como a forma que nasce com a pessoa como um punho fechado, talvez se abrindo no primeiro tempo com o próprio nascimento – então ele jamais poderá atingir sua plenitude como a rosa que se abre dentro do seu próprio tempo e morre amorosamente realizada, inteligente e feliz...
Mondrian, um segredo eu vou te contar: às vezes, eu me sinto tão desesperada, porque no momento em que “checo” este problema a solidão, o frio,” o medo do medo” me envolvem com todos os seus braços e procuram fechar este novo tempo que desabrocha na minha forma interior amassando pétalas frescas e delicadas que levarão novo tempo para se abrirem como se abre um olho devagar, depois de ter levado um bom murro.
Mondrian, se sua força pode me servir, seria como o bife cru colocado nesse olho sofrido para que ele veja o mais depressa possível e possa encarar esta realidade ás vezes tão insuportável – “o artista é um solitário”. Não importam filhos, amor, pois dentro dele ele vive só. Ele nasce dentro dele, parto difícil a cada minuto, só irremediavelmente só. Você seria talvez a chuva que molha a flor que nasceu na areia ou no asfalto, se você prefere, pois é cidade e não natureza.
Você hoje está mais vivo para mim que todas as pessoas que me compreendem, até certo ponto. Sabe por quê? Veja só se tenho razão ou não. Você já sabe do grupo neo-concreto, você já sabe que eu continuo o seu problema, que é penoso (você era homem Mondriam, lembra-se?). No momento que o grupo foi formado havia uma identificação profunda, a meu ver.Era a tomada de consciência de um tempo- espaço, realidade nova,universal como expressão, pois abrangia poesia, escultura, teatro,gravura e pintura. Até prosa, Mondriam... Hoje a maioria dos elementos do grupo se esquecem dessa afinidade( o mais importante ) e querem imprimir um sentido menor a ele, quando preferem que ele cresça sem esta identidade para mim imprescindível, numa tentativa de dar continuidade superficial a este movimento. Você bem sabe que, no cubismo, as formas foram várias, mas, no sentido mais profundo que era esta nova realidade espacial, foram respeitadas. Só o tempo a meu ver traria continuidade a este movimento.
Agora, velho, simpático mestre, diga-me com toda a franqueza: meu desejo é deixar o grupo e continuar fiel a esta minha convicção, respeitando a mim mesma, embora só mais que ontem e hoje, eu serei amanhã, pois as pessoas que se aproximaram um dia a bem pouco tempo, se afastam desorientadas sem enfrentarem a dureza de estar só num só pensamento, sem resguardar o sentido maior, ético, de morrer amanhã, sozinha, mas fiel a uma idéia. Diga, meu amigo: é duro,é terrível porque é deixar de ter,mesmo sem me afastar realmente do grupo,pois já se fragmentou a unidade, a verdade dura e terrível feita a sete para se multiplicar em realidades pequenas – reconfortantes por certo, ãs centenas,
Hoje eu choro – o choro me cobre, me segue, me conforta e acalenta, de certo modo, esta superfície dura, inflexível e fria da fidelidade a uma idéia.
Mondriam: hoje eu gosto de você..

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